O ato de criar é um ato político. Desprender o techno e a sua cena do contexto histórico que uniu diversos fatores para que o gênero florescesse e tomasse a forma que tem hoje é, para dizer o mínimo, diminutivo do impacto que a música tem na esfera social. Desde a sua criação no final dos anos 80, o techno sempre esteve em conexão profunda com as minorias – negros, gays, etc – e serviu como refúgio para muitos. É claro que nem todos os DJs e produtores criaram música, festas, coletivos e conceitos com essa intenção em mente, o ato de criar é político, mas nem sempre se tem consciência disso. Música não precisa vir com uma mensagem por trás e não existe obrigação de se posicionar, porém não dá para se negar que se dermos alguns passos para longe e tentarmos ver a cena como um todo, os nós que conectam os momentos históricos/políticos/sociais com a cena são tão nítidos que é impossível ignorar o papel do nosso estilo como um catalisador social.
Os anos 80 foram alguns dos anos mais lindos, culturalmente ricos e animados da nossa existência na terra. Porém também foram alguns dos mais dolorosos, repletos de morte e solidão. Isso se deve a epidemia de AIDS que teve início em 1981 e durou 20 anos, matando centenas de milhares de pessoas por causas naturais levadas ao extremo devido ao preconceito. A comunidade mais diretamente afetada pela epidemia foi a LGBTQ, chegou a se chamar a doença de “câncer gay” antes de descobrirem o vírus HIV. No meio de toda essa morte, houve uma persistência na vida, não somente em sobreviver, mas em de fato viver, criar, experimentar. Foi daí que surgiram alguns dos clubs mais famosos da história do house e do techno como o Smart Bar em Chicago, o Paradise Garage em NY e o The Music Institute em Detroit. O fotógrafo Thomas Alleman, que acompanhou a maior comunidade gay de São Francisco na Califórnia durante a epidemia, deu o nome para o seu arquivo de “Dançando na Mandíbula do Dragão” pois em frente ao vírus ele viu pelas suas lentes a insistência do amor, da música, da festa e da dança.
Durante os anos 90 o cenário político e a tecnologia foram revolucionados. O muro de Berlim caiu em 1989 e a globalização atingiu seu ápice com o avanço e domínio quase que onipresente da Internet. De repente o mundo inteiro estava conectado e o acesso para sons, referências e informações – que hoje em dia nós achamos normais de se ter – se tornou uma realidade constante. Produção musical nunca foi tão interessante, com nomes como Depeche Mode e Kraftwerk explorando os limites da interação entre o orgânico e o sintético, o real e o surreal, o novo e o velho. Mais do que nunca o techno serviu como ferramenta de união entre gêneros, raças e etnias, trazendo todos juntos dançando para o mesmo som encostando ombros na mesma pista. O estilo viajou para diversos pólos e lugares como São Paulo, Londres e Tel Aviv passaram a interpretar o que já estava acontecendo em Berlim e Detroit e traduzir a cena para o seu local.
Agora nos anos 2000, no momento contemporâneo que vivemos, que a cena está tomando uma posição política mais vocal do que nunca. Crescemos, percebemos erros e reconhecemos as origens do movimento – minorias, sempre. Falta de representatividade em line ups, rankings e na mídia é motivo de grande irritação e discussão nas redes sociais. Coletivos feministas estão tomando forma ao redor do mundo para unir as mulheres na indústria e apoiar umas as outras dentro do clubinho masculino que foi o techno por tantos anos. Núcleos criativos continuam aparecendo ao redor do mundo, promovendo ocupações públicas, intervenções artísticas e um ativismo impressionante.
Nesses últimos, quase, 40 anos de história, o techno evoluiu, tomou proporções astronômicas e atingiu um status mainstream, com festivais ao redor do mundo reunindo milhares de pessoas para ver nomes como Maceo Plex, Richie Hawtin e Dubfire. Assim como todas as outras artes, a música tem movimento fluído e expressões individuais que formam um caleidoscópio do coletivo quando vistas juntas. Por mais que nem todos os DJs sejam vocais no seu ativismo e cunho político como a The Black Madonna e o Seth Troxler, não dá para se negar que a cena teve seu início casado com o contexto do seu tempo que é, por obséquio, definido pela política e questões sociais. Essa conexão sempre vai existir e é partindo dessa afirmação que mais e mais artistas passaram a se posicionar de maneira mais aberta e dialogar sobre desconstrução de padrões pre-impostos na sociedade. De novo, vale ressaltar que o techno, e a música eletrônica como um todo, existe independente da sua consciência política, porém é explorando a mesma que a música se torna ainda mais experimental, ainda mais impactante, e ainda mais universal – ainda que única.
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